quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Verde-cinza, ou a incineração do futuro

Imagem: Ana Monteiro

Vai ser construída mais uma incineradora de lixo nos Açores, desta vez em São Miguel.

Para as pessoas com mais consciência ambiental, esta decisão é chocante, pois vai contra a imagem que se tem (e se quer propagar) dos Açores como região de natureza. Optar pela incineração nos Açores é contrariar todas as normas regionais, nacionais e europeias sobre a matéria, que privilegiam em primeiro lugar a redução da produção de resíduos e depois uma hierarquia para a respetiva gestão, que passa pela reutilização e pela reciclagem.

 A pergunta obrigatória é: Porquê? E porquê agora, após décadas de contestação?

 Uma primeira explicação é a ignorância. Ignorância sobre o impacte ambiental da economia neoliberal em que vivemos, baseada no consumo voraz dos recursos não renováveis do planeta. Ignorância da grande percentagem da população que não reutiliza, não recicla e não se importa. Mas ignorância também dos decisores autárquicos e governamentais, traduzida na inércia e falta de criatividade na resolução dos problemas ambientais. Se a ignorância dos decisores é indesculpável (pois lhes pagamos para defenderem o interesse público), quero propor que a explicação para o seu comportamento é mais funda, e para a entender há uma data simbólica: 20 de agosto de 2012. Neste dia o presidente Cavaco Silva aprovou o regime jurídico da atividade empresarial local, proposto pelo primeiro-ministro Passos Coelho, autorizando os municípios a transferir para o setor empresarial (entre outras) competências de gestão de resíduos. As empresas assim criadas devem apresentar resultados anuais equilibrados, sendo financiadas por contratos programas e pela venda dos seus serviços às câmaras, ficando expressamente probidas (!) de receber subsídios ao investimento.

A aprovação desta lei devia ter feito soar as campainhas de alarme. Como não se viu que tratar o lixo como uma mercadoria vai à partida criar conflitos insanáveis com o interesse público e os valores de sustentabilidade universais? Pois não se vê logo que considerar o lixo um recurso é um atropelo ao primeiro degrau da hierarquia de gestão de resíduos, chocando à partida com o seu primeiro pilar, a recomendação de reduzir a produção de resíduos?

 Muitos terão visto, para ser honesto, mas não me consta que tenha feito manchetes. De facto, esta lei (que também transforma a água em mercadoria) enquadra-se na lógica de privatizações que tem sido apresentada como a evolução natural da economia moderna. Acompanhado do mito da maior eficácia do setor privado e reforçado pela "inevitável" escassez de dinheiro do sector público, a mercadorização dos serviços públicos, apresentada como consensual pelos partidos dominantes, é aceite de forma acritica ou resignada pela população. "Não querem pagar mais impostos, pois não?", é o argumento.

 Ao aprovarem a construção de duas incineradoras nos Açores os autarcas eleitos pelo PSD e pelo PS estão a ser coerentes com a ideologia neoliberal que domina os partidos do poder.

 A gestão do lixo e o abastecimento de água à população são negócios. A dimensão das incineradoras é determinada pelo lucro do processo. O lixo é apresentado como um recurso, e a sua incineração como uma fonte de energia renovável. Não ver aqui um conflito com os valores de sustentabilidade ambiental é a confirmação de que a era da pós-verdade já chegou a este lado do Atlântico.

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